Rio de Janeiro, 18 de Maio de 2024

Internacional

Internacional

Escritora de expressão internacional, nasceu em Lisboa, Portugal, publicou diversos contos e inúmeros poemas em suplementos literários de jornais e revistas portugueses além de publicações em sites de internet.
Em sua visita ao Brasil, em 2001, foi madrinha da Academia Camoninense de Letras, onde ocupa a cadeira n.13.
Suas obras destacam-se pela simplicidade e sensibilidade com que aborda os sentimentos, sendo capaz de envolver a atenção do leitor, com sua pureza e romantismo.
E para você, de Portugal para o Brasil, Helena de Souza Freitas
 

TEMPESTADE INTERIOR

Sinto-me só e desesperada
como se a minha existência se resumisse a um negro e gigantesco nó,
que se aperta cada vez mais em torno das horas e das noites.
Sinto-me vaga e cansada
como se já te tivesse perdido,
como se já não me conhecesse(s) ou tivesse ficado sem memória(s).
Sinto-me exausta e sonâmbula
como quem se entrega ao tempo sem saber se vai chegar,
como quem está a mais em todos os lugares.
Sinto-me ténue e monótona
como uma velha (in)cômoda,
que resiste, desconfiada e severa, à lenta passagem dos anos.
Sinto-me rebelde e inalcançável
como se me olhassem de soslaio e eu me risse, num riso infinito,
de mim,
de ti
e deste mundo
de inevitáveis desencontros.

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O CRAVO

A 25 de Abril de 1974
festejou-se a liberdade e o sonho
com hinos nos lábios,
com votos renovados de esperança.
O País aberto à verdade
e os braços estendidos aos Heróis,
às promessas e à confiança.
Foi dia de luta, de lágrimas,
de adeus às armas, de acolhimento,
de um sorriso para uma certeza.
As prisões e as torturas
queriam-se longe da lembrança.
Agora reforçavam-se os desejos
de uma Pátria nova Renascida,
de uma Pátria nova Portuguesa!

Porém,
o tempo passou,
e um cravo rubro, solitário,
ficou na estrada tombado...
As desilusões esmagaram-no
e o Homem Novo ignorou-o,
tomando-o por vinho entornado.

E hoje
é recordado com brindes e discursos de glória
esse dia que ninguém esqueceu.
Mas há novos pés, no silêncio, a pisarem
aquele cravo de sangue exaltado e vitória
que no auge da festa alguém perdeu.

No futuro,
uma criança,
brincando na areia da estrada,
encontrará o cravo
que à Revolução foi ceifado.
Ao romper de uma aurora,
em vigor, plantá-lo-á de novo,
para que a fé não se apague.
E crente nas razões do povo,
na sua justiça e na sua dor,
estará a plantar, sem o saber,
a mais doce força da Saudade,
o mais intenso poema de Amor.

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DEBAIXO DO VÉU

As noites contigo são insones e dormentes,
Não descansam.
Nem o corpo doentio, exaltado de suspiros.
E de pensamentos puros e ardentes.

Há punhais que me rasgam as roupas e o ventre,
Nas noites contigo,
Há um lume que me prende à cama e me tortura.
Que me inspira e devora a alma.

Ninguém consegue deter o temporal que desaba,
Que é vulcão... e dilúvio... e tornado,
Nas noites contigo,
Teu corpo é seda com que teço a vida.

Meus lábios te descobrem e desenham
Em movimentos inquietos e doces.
O coração está cadente, suspenso dos céus,
Nas noites contigo.


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PALAVRA

 

O que é uma palavra,
quando te digo tantas
em todos os instantes?

O que é uma palavra,
quando o silêncio se instala
e a sua ausência se nota?

O que é uma palavra?
Quando é de Amor?

O que é uma palavra?
É quando a Sonhamos?


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MORREM AS ÁRVORES DE PÉ?


Uma árvore cai!..
... não se (lhe) ouve um som
na Natureza
a morte é sempre assistida do silêncio.
As outras árvores choram...
e o seu pranto é mais pungente
que a dor do tronco magoado,
a descer lentamente por entre a vegetação,
até esmagar o solo.


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COMO UM MAPA EM TUAS MÃOS


Em tuas mãos de seda feitas...
há rotas de finos tecidos
que o meu corpo vai percorrendo.

Em tuas mãos de pele meiga...
há traçados invisíveis
que o meu destino vai tecendo.

Há lugares desconhecidos
que encantariam exploradores
... em tuas mãos perfumadas.

Em teus dedos de cetim...
há um mapa das Índias
com especiarias cobiçadas.

Em teus dedos aromáticos...
há suaves rasgos de pecado
que me deslumbram os sentidos.

Há uma geografia indizível
como os caminhos de Cartago
... em teus dedos refletidos.

 

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BOA NOITE SOBRE A TERRA

A noite abre-se,
quente e seca,
sob o Céu, sobre a Terra.
Espreguiça-se, languidamente,
e abraça o Mundo
com os seus braços finos.

Tem uns olhos grandes,
escuros e espantados
e uma voz melodiosa,
de grilos e cigarras.

Mas esta noite
está irrequieta,
em desassossego:
repara como os solos ardem,
como as árvores se abatem,
como os homens se perseguem e mutilam.

A noite está descontente.
Abre a boca, solta um grito:
- Um raio rasga a Terra,
uma chuva intensa começa a cair.
O dilúvio alaga os continentes
e extingue a vida humana.

É a noite que está a chorar...
... desconsolada.

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FRAGILIDADE


Fiquei frágil
de repente
as forças dissolvidas
em espuma e delírio,
numa ausência de certezas.

Como não temer o que se mostra
do que se sente
quando o chão nos escapa
debaixo do corpo?

Acreditar em que palavras
quando tudo o que se escreve
nos deixa sem resposta,
nos confunde e derrota?

A dúvida alastra e devora-me.
Cada degrau vacila.
Só o que se pressente é
timidamente seguro.

O Sol instalado nos dias
já nada nos diz.
Apenas fere fundo o espírito
e os pés solitários na terra fria.

Onde tudo em mim é bulício,
engano e abandono
permanece,
mal esquecido,
um gesto teu.

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POEMA DE PAPEL


Livro

Abres um livro
pões-te a lê-lo.
Folheias,
marcas,
sublinhas, se calhar.

Viras-lhe a capa
desdobras
as bandas, se as tiver,
e colocas o livro
no lugar.


Folhas

Passas os dedos
no papel claro,
nas linhas finas,
nas notas por apagar.

Vês as frases,
com ou sem rumo,
e és quem decide:
recuas ou deixas-te levar.


Texto

Enfim prosseguiste
na viagem ao livro,
no rasto das palavras.
Uma corrente de letras
quer fazer-te render
de uma às outras páginas.

Se o conto te envolve
já estás enredado
dentro dessa história.
Esquecido do mundo,
reflectes no que lês,
constróis mil imagens.

No mergulho ao texto,
que dás sem sentir,
enrola-se a trama.
E então não és tu,
já sem saberes de ti,
mais do que as personagens.

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DUAS PINCELADAS NUM QUARTO DE TELA

Finalmente descobrira um local onde o tempo se prolongava esquecido, sem maiores pressas, pela tarde dentro. Eram poucos os visitantes da galeria naquela tarde acinzentada de Outubro em que, lá fora, se arrastavam já as primeiras folhas caídas sobre os ímpetos uivantes da ventania, que fazia mover os raios de luz e desviava até a rota original das aves.

No entanto, ali dentro, mesmo protegida dos desalvoros do vento e da infinita melancolia do céu, continuava com uma disposição solitária, adequada à fria palidez e ao silêncio monacal dos corredores, apenas coloridos e quentes nas diversas manifestações de arte que ao longo deles marcavam presença. 

Devagar ia olhando todos os quadros, com uma expressão vaga que os menos atentos poderiam facilmente confundir com desinteresse. Subitamente estacou, incapaz de um próximo passo, com o olhar fixo e penetrante numa tela que, estando segura de nunca ter visto antes, juraria conhecer desde a nascença. Sentiu-se de imediato vencida pelo magnetismo impreciso da obra e deixou-se conduzir aos seus pormenores mais velados, em sagrados momentos onde a celebração da vida se lhe revelou, transmitindo-lhe uma imensa sabedoria.
         

Entra. Senta-se quase invisível, possuidora da figura evanescente dos espíritos, mas, como não tem a certeza dessa imaterialidade, esforça-se para que o soalho não lhe estale debaixo dos pés. 

O quarto é mediano e simples, quase pobre. Tem por única mobília uma antiga cama de pinho e uma mesa de cabeceira vencida pela idade, sobre a qual descansa um candeeiro a petróleo, de vidro embaciado e chama vacilante. Frente à cama os vidros de uma pequena janela, cujos caixilhos denunciam a passagem dos anos, evidenciam contornos do exterior. Adivinha-se através deles a quietude bravia do lugar, o cheiro ácido da terra e a própria dormência da Natureza.
         

A luminosidade dentro do quarto é a suficiente, realçando-se o brilho da chama à medida que se aprofunda o entardecer. Tem-se uma imediata sensação do peso do ambiente, pois a sensualidade ali contida não parece soltar-se apenas dos dois corpos saciados que repousam na desordem dos lençóis. A sensualidade está presente sob todas as formas possíveis, desprendendo-se do mobiliário, da tinta das paredes e do negrume do tecto.
         

A noite, feiticeira, traz vida àquela imagem e impregna o ar com invulgares cintilações de poesia que ajudam a desanuviar a tensão ambiente. Afinal, não estão adormecidos: tocam-se, desencadeando os primeiros movimentos do ritual amoroso. As mãos, deslizando, vão quebrar-se como ondas no seio sereno e os lábios, queimando, decoram a fina textura da pele.
         

Ao mesmo ritmo, com a mesma cadência, os corpos desprendem-se da penumbra: já não são meros vultos escuros de perfil indistinto como sombras chinesas recortadas na parede à contraluz. São dois corpos seguros e ardentes, que se elevam do leito mantendo-se flutuantes a escassos centímetros da colcha de linho amarrotada que desce pela cama até roçar no chão. Parecem quase desmaterializar-se, perder a forma, dissolvidos numa poalha de reflexos.
         

Deslizam na fluidez do espaço e na lentidão do tempo, que são ali autênticos, que se deleitam até ao êxtase, imitando o prazer dos dois seres que estão incumbidos de velar. Dois seres que vivem intensamente o prodígio de se descobrirem um no outro, de se envolverem uma vez mais em mútuo conhecimento, sempre deslumbrados pelo repetir da revelação. Se têm pensamentos nesse instante, estes são por certo incapazes de caber no tempo e no entendimento da civilização. Nota-se em ambos uma espécie de ligação livre de atalhos e fronteiras interiores entre o corpo e a mente. Um é, em permanência, o guardião do outro e, mesmo a dormir, vigiam-se mutuamente através de sonhos.
         

Encontraram um desses raros amores, construído com demora, que parece já ter resistido a distâncias e guerras e vencido monotonias e desilusões. Partilham-se numa relação superior, desenvolvida e dominada por silêncios e intuições e, permanecendo unidos do mesmo lado da sensibilidade, consumam o seu amor longamente, como uma chama que pode durar até um tempo que a Humanidade não conhece.
         

Aprenderam a amar-se serenamente, cada um a tocar a pele do outro, descobrindo os seus segredos e o desejo de cada fibra. Muitas vezes conseguem mesmo situar-se longe da realidade, que as horas suspensas naquele local ajudam a apagar ou que a imaginação ilude.
         

Tinham deste modo alcançado uma plenitude que permitia a qualquer um dos dois a libertação através dos gestos do outro, ambos se lendo e se despindo na delicadeza de um olhar.
         

- Encontram-se momentos sagrados quando entramos num mundo de conhecimentos de tom tão secreto - pensa com assombro, ali estagnada no calor, enquanto percepciona tudo com nitidez e embaraço, numa quase transparência. Por instantes, a sua própria sensibilidade impressionada esquece que a fusão total e perfeita de duas pessoas mais não é do que uma utopia romântica. E, no entanto, não lhe é possível saber algo de mais simples, de menos profundo: a simplicidade, o óbvio, parecem estranhamente não corresponder às partes tangíveis daquele amor. Só ao complexo lhe é cedido o acesso.
         

Não sabe se os dois seres estão naquele quarto pela primeira vez ou encarcerados pelos anos. Desconhece qual a razão por que não se escuta ali um só som: nem dos estalidos secos da madeira da cama, nem do suave toque dos lençóis, nem da voz sussurrante dos amantes. Dir-se-ia que os sons ali não se propagam, que a cena decorre num vácuo ou para lá das vulgares barreiras espácio-temporais.
         

Acalmia. Agora encontram-se já em sossego, cada um enfrentando a sua momentânea solidão. Estão invadidos por uma paz de recém-nascido, e possuem um brilho raro na nudez semeada por gotículas de transpiração. Deixam-se contemplar: ele de rosto largo, bem demarcado e tronco endurecido, trabalhado com arte; ela, de cabelos agrestes, olhar de silenciosa atenção e pele dourada, com um ardor de sal. São belos, são incrivelmente belos porque são autênticos nas suas expressões imperfeitas, o que lhes imprime contornos de misteriosos animais selvagens. Por entre sorrisos trocam olhares onde a mansidão dos prados nos olhos dele suaviza a terra ardente dos dela. O aroma adocicado, intrínseco aos dois, lembra o da tinta fresca, do verniz da moldura e do tecido da tela, associado ao extravagante cheiro a luxúria dos quartos de pensão.
         

Quando só um dos dois amantes ali estiver, vai certamente sentir o corpo ancorado ao leito e a alma encolhida no espaço que a ausência do outro deixou vazio. Sempre que tal sucedia, ela procurava-o com desespero em cada recanto de si mesma e ele agia de igual modo, embora nunca o tivesse confessado, pois o assunto era parte integrante da sua natureza enigmática. No entanto, ela soube-o, tal como sabe toda a verdade sobre ele agora: nunca um homem é tão transparente, frágil e vulnerável como quando repousa ao nosso lado na sua completa nudez.
         

Inicialmente, essa falta deixava-lhes a existência sem rumo possível, mas a experiência levou-os a descobrir um mundo de invisibilidade onde podiam orientar-se como entidades transcendentes. Aprenderam a guiar-se pelo ardor impalpável do desejo, que se recusava a desimpregnar a pele atormentada e invadia a candura dos lençóis, transformando, em cada ausência, a cama numa prisão.
         

Só um tinha então autoridade para entrar nos sonhos do outro, despindo-se na sua noite, vindo da penumbra do quarto, das fragrâncias da distância e da dor do silêncio. Enquanto isso, sucediam-se sonhos tão intensos que por pouco não incendiavam os lençóis, transformando a cama de madeira exausta numa pira dantesca. E durante todo o dia essas lembranças permaneciam como sombras na face da memória, ameaçando persistir para vidas posteriores.
         

- Esta é a milésima segunda noite de encantar, aquela que Scherazade nunca chegou a criar durante a sua longa odisseia de contista virgem - pensou quase alto, numa tentativa de sobreviver ao seu próprio espanto. Na sequência destes pensamentos, uma total imobilidade regressou à cena e ela sentiu a leveza nascer-lhe nos pés, possibilitando-lhe de novo o caminhar, e a capacidade de decisão ser-lhe restituída: já podia optar por sair livremente da tela e, contudo, hesitava em fazê-lo... A energia tinha-se-lhe esvaído...
         

Por fim, despertou das brumas e abandonou a tela ao seu erótico perfume. Sentia os membros pesados e dormentes e a vista inadaptada à intensidade da luz.
         

Ainda se ficou a contemplar o quadro, demoradamente, mas não se despediu porque isso lhe era impossível. Nunca o veio a adquirir pois soube desde logo que as suas paredes, tal como as daquela galeria, não eram suficientemente amplas para a mensagem que, num envolvente e delicioso secretismo, o autor tencionava transmitir. A tela devia ser pertença exclusiva da Natureza, ou de alguma outra entidade igualmente grandiosa e indomável.
         

Além disso, temia demasiado que àqueles dois corpos, construídos em duas simples pinceladas rosa, ocorresse em alguma ocasião o cansaço do seu quarto encolhido na tela e se resolvessem a escapar dos limites da moldura. Então, seriam livres para lhe povoar os sonhos de arrebatamento, a perseguir na noite imensa e lhe transformar em fogo os alvos lençóis e a amarrotada colcha de linho que, nos momentos de maior desordem, pende cama abaixo até roçar no chão!

 


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A SAUDADE SEGUNDO QUEM VIAJA

         

Já me esquecera de como é viajar no segundo piso de um Expresso, da sensação de proximidade ao tecto das estações rodoviárias que temos aqui de cima.
         

Seguem hoje comigo pessoas que se dirigem aos quatro cantos da Terra. Animadas descrevem as viagens que já fizeram, dando-lhes contornos distintos e pinceladas alegres e coloridas para que o senhor do banco ao lado consiga visualizar a cena e invejar uma pontinha. Sonhadoras, discorrem acerca dos planos traçados para a que agora realizam e para as próximas que, "assim Deus dê saúde e fortuna", virão a efetuar.
         

Tenta-se enganar o cansaço dos membros, que adivinham já a lonjura do destino e o clima de taciturna introspecção característico dos transportes públicos, mantendo aceso o tom das conversas. Contam-se casos de pessoas que se viram pela primeira e última vez numa viagem como a de hoje. Pessoas que aqui se encontraram e aqui se perderam. Amizades sinceramente descobertas, mas que se sabem com as horas contadas pelo tempo de um trajecto quilometrado. E a magia que permanece... E a pena que fica para a posteridade e se vai transformando em saudade e numa angustiante sensação de perda... O eterno e amargo encanto de todos os laços forçados, pela sua própria natureza, a quebrarem-se cedo de mais.
         

Como é ansiado um reencontro!.. Como gostavam de se tornar a ver, nem que só mais uma vez, nem que só para relembrar o rosto e a voz. Um desejo crescente e inexprimível de descobrir se a imagem amarelecida que perdura na arca empoada memória ainda se ajusta à realidade. Não há dúvida: a nossa vida é um processo contínuo e doloroso de habituação à saudade. A nossa existência é a da própria saudade, e o nosso tempo é empregue em tentativas infrutíferas de a ignorar.
         

Mas também se encontravam neste autocarro alguns daqueles «viajantes de profissão», talvez mais resistentes à saudade, que estão habituados a seguir a pé pelos trilhos de escuteiros e caminhos de peregrinos, com as tendas a pesarem-lhes nas costas, o corpo afastado da água durante dias e um rafeiro por única companhia.
         

Têm visto um pouco de tudo por este mundo fora, mas isso não os faz desistir de procurar novos desafios e razões e de se cansarem nas distâncias, nem lhes apaga o brilho aventureiro do olhar. São eternos caminheiros, quer por vontade do destino, quer por uma sina de inquietude que lhes domina os membros.
         

Coleccionam pelo corpo recordações de cada paragem, evidenciando-se os cabelos à rastafarian, as tatuagens no ventre e o anel no dedo mindinho do pé. Do mesmo modo, as roupas espelham lembranças de outras terras e gentes, como o testemunham o cheiro a especiarias das túnicas indianas e o halo místico dos xailes do Perú.
         

São capazes de se aguentar dias inteiros na prática da dança do ventre, do reggae, do flamenco, ou de outro desses ritmos quentes que alvoroçam a mente e sacodem os ossos até à exaustão, sem contudo apresentarem quaisquer sinais de rendição.
         

Aprenderam truques de faquir, de controlo da respiração e a atravessar passadeiras de carvão incandescente sem que a sensibilidade se afecte. Conseguem ainda uma surpreendente fluência em alguns dialectos de África e da América Latina.
         

Para ganhar para o sustento, durante as caminhadas vão elaborando inúmeras e minuciosas peças de artesanato. E o certo é que possuem não só um talento inato e fascinante nas mãos bronzeadas mas também a criatividade necessária para um eficaz aproveitamento de todo o tipo de materiais.
         

Eu saio a meio caminho por assim dizer. A maioria dos passageiros ainda terá que trocar de transporte várias vezes até à conclusão da viagem. Há quem considere essas mudanças atribuladas da bagagem de um transporte para o outro como um dos episódios mais divertidos da arte de bem viajar!..
         

Agora sigo pelas ruas, orientada pelo Sol e pelos sorrisos que se abrem nos rostos despreocupados dos turistas, eu e eles em visita à cidade-museu de Portugal. Por todo o lado me cercam idiomas distintos, em frases exclamativas que soam a diversidade cultural. E pensar que no Inverno é necessário o andar apressado e as conversas ruidosas dos universitários para que o silêncio e a calma das ruas se quebre.
         

Mas desta feita estou só de passagem. Daqui a poucas horas volto para casa e, ao gosto da imaginação e das lembranças, vou poder rever os estudantes ondeando por entre os autocarros, com as malas coloridas erguidas à cabeça qual varina carregando a sua canastra. O espectáculo inesquecível das tardes de sexta-feira, em que uma chuva multicolor caía sobre a estação rodoviária.
         

São dezanove horas quando entro no Expresso, presenciando as situações comuns a estes momentos que também eu vivi: uns vão despedir-se dos familiares que partem atravancados pela bagagem e pelas últimas recomendações, outros vêm receber parentes e amigos, aliviando-os do peso das malas e carregando-os de sorrisos de boas-vindas.
         

Alguns são emigrantes que terminaram as férias, aproveitadas numa visita à terra natal, e regressam agora à sua vida rotineira num país longínquo, sentindo um peso maior na mala que guarda a nostalgia antecipada do que naquela onde levam os agasalhos e as especialidades locais.
         

Escolho novamente o segundo piso, o que me permite apreciar o crepúsculo: lentamente apagam-se as sombras das árvores sobre a planície e no céu fundem-se rasgos nublosos que variam do rosa ao violeta, intercalando tons de laranja e vermelho num fundo azul turquesa. O declínio prossegue até que a noite se impõe e a Lua, antes sumida no horizonte, ganha luz suficiente para banhar os montados que ladeiam a estrada.
         

Na rádio tocam "Os Filhos da Nação", "Maio Maduro Maio" e todo o "Miracles" de Kenny G. enquanto eu atento vagamente nos faróis dos automóveis que circulam nos dois sentidos da via. Nesse instante, na escuridão, lembram isqueiros acesos num concerto ao vivo.
         

Não tardo a ser invadida por uma sonolência de que só me liberto por volta das vinte e uma horas, ao chegar a uma estação sem esperas, numa cidade que nem sempre considero minha.

 

 

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Biografia
 
Helena de Sousa Freitas nasceu em Lisboa, Portugal, a 5 de Janeiro de 1976.
Licenciada em Comunicação Social, é jornalista na Agência Lusa desde 1998.
Em 2001 tornou-se entrevistadora oficial do "Literário Online", no Brasil.
A autora está representada, com poesia ou conto, em seis colectâneas em livro - Poiesis (1999), (De)Corrente (1999), Águas Furtadas 2 (1999), Net Art Fax Internacional (2000), A Sensualidade da Língua (Brasil, 2000), Espelhos da Língua (Brasil, 2001) - e em duas antologias em CD-ROM, uma no Brasil (2000) e outra no Reino Unido (2001).
Também está publicada em mais de uma dúzia de poezines e suplementos literários portugueses. Conta ainda com poemas e contos editados em quarenta websites dedicados a literatura em Portugal, Espanha, Alemanha, Brasil e EUA.
No que respeita a participações, há a registar a sua presença em três exposições, três workshops de escrita criativa (como poetisa convidada), dois festivais e dois encontros de poetas.
A autora foi ainda convidada para júri do Poetry Bash, concurso de poesia ao vivo que decorreu em Washington DC, EUA, em Agosto de 2000.
Relativamente a prémios literários, Helena Freitas acumula quatro primeiros lugares, um segundo, três terceiros e cerca de doze menções honrosas nos diversos concursos em que tem participado.

Helena de Sousa Freitas

 

Crédito:Helena de Sousa Freitas

Autor:Helena de Sousa Freitas

Fonte:Helena de Sousa Freitas