Rio de Janeiro, 19 de Maio de 2024

Adeus à dor

Quem sofre de enxaqueca com certeza imagina, durante as crises, que nada pode ser mais devastador. Puro engano. Pior do que padecer desse mal era se submeter à inventividade dos tratamentos adotados no passado. Papiros do antigo Egito, por exemplo, descreviam a doença e caprichavam no remédio: primeiro, amarrava-se um lagarto ou crocodilo vivo na cabeça da vítima. Em seguida, alimentava-se o animal com ervas especiais. Depois, era só esperar que o poderoso “kit” revertesse os sintomas do paciente. No século IX, os habitantes das ilhas britânicas espantavam a enxaqueca ingerindo um suco de sabugueiro misturado com miolo de vaca e estrume de cabra. Tudo dissolvido em vinagre.

As maiores vítimas de tanta criatividade eram as mulheres, assim como hoje são elas que lideram as estatísticas de prevalência de migrânea, o outro nome
da enxaqueca. Em todo o mundo, e o Brasil não foge
à regra, a doença é três vezes mais frequente na população feminina do que na masculina, especialmente a partir da adolescência. Na infância, a ocorrência de enxaqueca é equivalente entre meninos e meninas. Na puberdade – quando começa o período fértil –, os dois grupos começam a se distanciar e as mulheres ultrapassam os homens. A correlação entre a migrânea e o período fértil deu aos cientistas pistas de que as alterações hormonais femininas estão diretamente ligadas ao problema. Verificou-se ainda que a enxaqueca é intensificada ou reduzida em fases que representam os principais marcos hormonais da mulher: a menstruação, a gravidez e a menopausa. A terapia pode ser definida a partir da identificação dos períodos mais agudos da dor (confira na página 54). “Se a enxaqueca só ocorre no período menstrual, o tratamento é o de crise, com remédios para combater os sintomas. As pacientes que têm o problema intensificado nessa fase são submetidas a um programa preventivo ao longo do mês, com aumento das doses nos dias críticos”, explica o neurologista Getúlio Daré Rabello, chefe do ambulatório de cefaléia do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Menopausa – A chegada da menstruação pode ser um tormento por causa da enxaqueca. Já na gravidez, ocorre o inverso. Os índices de melhora da doença são tão altos que os médicos costumam dizer, em tom de brincadeira, que a gestação é o único tratamento hormonal para enxaqueca, com 60% de eficácia (esse é o porcentual de grávidas que se livram do problema). Entre as demais gestantes, 30% relatam que as crises enfraquecem e 10% que não sentem alterações. A menopausa também marca um período em que as enxaquecas tendem a diminuir, exceto em mulheres cuja menopausa foi “cirúrgica”, ou seja, provocada pela retirada do útero. Elas continuam com o problema se os ovários forem poupados, o que mantém os níveis hormonais. A reposição hormonal, adotada para tratar os sintomas da menopausa, também pode ajudar. “Seus efeitos são variáveis, mas os casos de enxaquecas resistentes parecem melhorar com a reposição”, afirma o neurologista Felipe Wainer, do Hospital Beneficência Portuguesa, de São Paulo.

Para algumas mulheres, a pílula anticoncepcional também pode ser um fator de desencadeamento ou piora da doença. Isso ocorria com mais frequência no passado, quando os anticoncepcionais carregavam altas concentrações de hormônio. Com as pílulas modernas, de baixas dosagens, a incidência foi reduzida. Ainda assim, os médicos advertem que o casamento entre enxaqueca e pílula merece atenção especial se as crises de dor de cabeça forem acompanhadas de “aura” – nome dado a manifestações como alterações visuais ou da fala, formigamento das mãos, pés ou lábios e fraqueza muscular. “A mistura é particularmente explosiva se a mulher for também fumante”, afirma Rabello.

Odores – Os registros dos centros de tratamento de enxaqueca mostram que a incidência da doença está aumentando no mundo – estima-se que o mal já atinja 1,2 bilhão de pessoas –, mas o crescimento é mais acentuado entre mulheres. O stress decorrente da mudança do papel social da mulher, cada vez mais presente em atividades tradicionalmente reservadas aos homens, é a principal explicação para o fenômeno. Mas outros fatores, como a ingestão de cafeína, álcool ou o jejum prolongado, a falta de sono, o barulho, mudanças de temperatura e odores também podem deflagrar crises. A enfermeira Roseli de Freitas, 29 anos, por exemplo, passa mal com os produtos usados na limpeza e desinfecção do hospital onde trabalha. No dia da faxina, ela já sabe: é crise de enxaqueca na certa. Pelo menos uma vez por semana Roseli sofre com a migrânea. Já foi pior: há cerca de um ano, antes de iniciar um tratamento específico, tinha três surtos por semana. No seu caso, a conduta é preventiva, com doses diárias de medicamentos.

Parte dos mecanismos desse mal é bem conhecidosa da ciência – inclusive o gene responsável por algumas formas de enxaqueca, situado no cromossomo 19 –, mas muitas perguntas ainda permanecem sem resposta. A migrânea se desenvolve no sistema nervoso central, numa área conhecida como centro gerador da enxaqueca, próximo à região responsável pelo controle e modulação da dor. Exames feitos durante as crises mostraram que essa porção do cérebro fica extremamente ativada. Sabe-se ainda que os fenômenos da aura são provocados por uma alteração na atividade elétrica da superfície cerebral, o córtex, e que a dor resulta de uma inflamação ao redor das artérias cerebrais causada pelo nervo trigêmeo.
Continuam sendo incógnitas: a) como essas três partes – o córtex, o centro
gerador de migrânea e as artérias – se relacionam; e b) o que exatamente
deflagra a enxaqueca.

Crédito:Luiz Affonso

Autor:Redação

Fonte:Isto É