Esse tratamento deverá mudar com a atuação dos portugueses em Esperança e a estréia, em setembro, da próxima novela das 6 da Globo, Sabor da Paixão, gravada em Portugal. Na primeira, o português que vai aparecer nos capítulos programados para os dias 12 e 13 chama-se José Manoel e não usa tamancos nem bigodão. É um estudante ferido na batalha das tropas paulistas contra a milícia de Getúlio Vargas em 1932. O autor da novela, Benedito Ruy Barbosa, sente-se à vontade para falar tanto do universitário lusitano como do italiano Toni, principal personagem de Esperança. "A mesa brasileira, afinal, combina bacalhau e macarronada", compara o dramaturgo, que tem sangue das duas culturas nas veias. "Se tivesse de definir o traço fundamental da cultura italiana, diria que é a passionalidade, enquanto o da portuguesa é a severidade, o que explica em parte a diferença de tratamento."
Carlos Ivan/Ag. O Globo |
MACARRÃO E BACALHAU As novelas Nino, o Italianinho(à esq.) e Antônio Maria foram pioneiras no tratamento da imigração pela TV |
Ruth Escobar lembra a propósito da figura do pai, português, com o cinto na mão, signo do autoritário colonizador que brandiu a chibata e provocou ressentimento por onde passou. O deboche seria, então, uma espécie de vingança da ex-colônia contra as condições de vida dos escravos e dos trabalhadores brasileiros, que, posteriormente, viriam a ser maltratados por imigrantes. Claro que os portugueses sofreram e ainda sofrem com essa ironia. "Eu buscava o isolamento, me escondia da comunidade portuguesa com vergonha de ser confundida com patrícios ignorantes", conta a empresária.
Fotos: Gianne Carvalho/TV Globo |
NOVA IMAGEM O italiano Toni (Reynaldo Gianecchini, acima) ganha um concorrente ao posto de herói romântico na figura do português José Manoel (Nuno Lopes, à esq.), um estudante revolucionário em Esperança, que está na novela para mostrar que o imigrante lusitano também era engajado |
Com o mundo mergulhado no desemprego e na crise econômica, cresce o risco de se repetir aqui a síndrome xenófoba dos países ricos, onde os estrangeiros passam a ser considerados "extracomunitários", eufemismo inventado pela União Européia para ä identificar imigrantes indesejáveis. Enxovalhar o "outro", rebaixá-lo para afirmar a identidade étnica sempre foram táticas usadas na luta pela sobrevivência. É só lembrar que portugueses e italianos competiam pelo mesmo emprego no Brasil dos anos 30, período da Grande Depressão enfocado na novela Esperança. Os primeiros representavam, então, um quinto dos moradores do Rio de Janeiro e metade da população empregada, o que explicaria o antilusitanismo, segundo historiadores. Os rivais mantinham uma relação tensa e inventaram piadas que traduzem a competição entre as duas comunidades com desvantagem considerável para os herdeiros de Cabral.
O imigrante italiano era igualmente pobre, como o Toni de Esperança, mas preservou estreitos vínculos com a cultura que tinha deixado para trás e da qual sempre foi orgulhoso. O português veio de aldeias atrasadas, de uma cultura essencialmente agrária. Ficou com a imagem do "cutruco", baseada no binômio avareza e ignorância, de acordo com uma pesquisa realizada há dois anos. Por outro lado, há toda uma história ainda não contada sobre a militância política dos líderes operários portugueses entre a proclamação da República e 1920. Os ficcionistas, de modo geral, elegem o imigrante italiano como trabalhador consciente e politizado, reservando injustamente ao português o papel de trapaceiro ou alienado. Exemplo antigo dessa redução é o Antônio Maria da telenovela de mesmo nome escrita e dirigida por Geraldo Vietri em 1969. Pioneira no tratamento do tema imigração, Antônio Maria agradou à colônia portuguesa ao apresentar um milionário que se fazia passar por chofer. Incentivado pelo sucesso da novela, o mesmo Vietri repetiu a dose em Meu Rico Português, não sem antes homenagear os "rivais" em Nino, o Italianinho, em 1970. Em todas elas os estrangeiros foram estereotipados. O panorama só mudou com a estréia da novela Os Imigrantes, em 1982, em que três Antônios um português, um italiano e um espanhol desembarcavam no Brasil para enriquecer. O espanhol sofria mais que os outros para subir na pirâmide social.
Já a espanhola Carlota Joaquina veio do topo e teve de descer quando chegou ao cinema e à televisão. Devoradora de homens, a infanta foi ridicularizada no filme que leva seu nome, dirigido por Carla Camurati. Mais recentemente, a "rainha louca" virou megera edipiana na minissérie O Quinto dos Infernos, que mostrou as taras de outros integrantes da família real portuguesa. Dom João VI abriu os portos, mas fechou os olhos para o desvario sexual de dom Pedro I e a paixão homossexual e incestuosa do irmão, que provocaram protestos da comunidade portuguesa. Mas foram poucos, segundo o diretor da Central Globo de Comunicação, Luís Erlanger. "Desde o início ficou claro que era uma paródia, e quem a viu verificou que o tratamento caricatural não se restringia aos portugueses, mas igualmente a franceses e brasileiros." Rui Rasquilho, diretor do Instituto Camões, foi um dos primeiros opositores à minissérie. Perguntou, na semana de seu lançamento, se "os brasileiros não se envergonhavam de fazer uma coisa dessas". O autor Carlos Lombardi respondeu: "Sou descendente de portugueses, minha mãe é italiana com cara de turca e fui até muito doce com a família real, deixando de lado um farto material de pesquisa sobre ela". O problema é que os arquivos históricos também possuem "farto material" para mostrar uma visão inversa, que desenha um dom João VI muito mais astuto que estúpido e um dom Pedro I bem mais sintonizado com os dilemas de seu tempo do que o seriado permite imaginar.
Carlos Ivan/Ag. O Globo RISOS Carlos Lombardi, autor de O Quinto dos Infernos, só quis divertir |
Em todas as novelas que escreveu, de Vereda Tropical a Perigosas Peruas, Lombardi usou imigrantes sem intenção de ofender. Só que, no caso de O Quinto dos Infernos, não tomou a precaução da diretora Carla Camurati em Carlota Joaquina, que atribuiu a um narrador escocês a tarefa de contar a história no filme. Eximindo-se da culpa de mostrar dom João VIcomo bufão devorador de coxinhas de galinha e uma Carlota bigoduda e assanhada, a cineasta filtrou a realidade pelo olhar estrangeiro. Inverteu a tese do sociólogo Gilberto Freyre. O colonizado vinga-se da repressão brutal do colonizador, mas incorpora um sentimento paternalista ao falar de seus defeitos, como no samba-enredo do crioulo doido. Afinal, a principal característica do Carnaval é promover uma representação grotesca da realeza desfilando de pandeiro na mão diante do estático e balofo Rei Momo. Inverte-se a hierarquia para tudo ficar na mesma.
A carnavalização é malvista pelos portugueses, garante a dramaturga Maria Adelaide Amaral, elogiada em sua terra natal pela adaptação de Os Maias. "Sou obrigada a concordar que existe certo ressentimento do colonizado, que ainda vê o imigrante português como energúmeno, mas não gosta de ser identificado lá fora com prostitutas e travestis." De fato, a pesquisa do professor Tunico Amancio, da Universidade Federal Fluminense, para escrever sua tese O Brasil dos Gringos, revela que o estereótipo do brasileiro como lascivo confere. Ele analisou mais de 200 filmes estrangeiros sobre o país. Concluiu que "nos tratam como gente fogosa, vagabundos carnavalescos que adoram macumba e vivem de trapaças". Numa pesquisa realizada com portugueses por ocasião dos 500 anos do descobrimento os brasileiros foram vistos como preguiçosos, mentirosos e abusados. Principal virtude? A alegria, seguida da cordialidade. Será?
Crédito:Fatima Nazareth
Autor:Antonio Gonçalves Filho
Fonte:Época