O gene da escravidão existe e moldou um povo conformado e submisso a níveis absurdos.
E o pior é que nos acostumamos a isso.
Nos jornais lemos todos os dias notícias de escândalo sobre escândalo, desmando sobre desmando e assistimos à desfaçatez dos políticos que atuam como se fossem os patrões e não representantes de seus eleitores, tratando a coisa pública como se privada fosse (em todos os sentidos, inclusive o figurado).
Vemos uma elite cínica, sem temor e escravocrata e um povo de um conformismo e aceitação canina da autoridade em todos os níveis.
Desse jeito não há saída possível.
Talvez fosse necessário importar gente furiosa para introduzir alguns genes de indignação e raiva em nosso povo.
Costumo repetir que só é possível democracia se o poder tiver alguma dose de temor (e em conseqüência, de respeito) pelo seu povo, nem que para isso tenha sido necessário cortar o pescoço de alguns poderosos.
Por que digo isso?
Refiro-me a um incidente ocorrido há uma semana num hospital de São Gonçalo.
Duas pacientes internadas no Pronto Socorro local, Wilma Maria Caboclo Fernandes e Maria Rita Alves dos Santos, ambas senhoras de idade e com a mesma doença (derrame cerebral), tiveram suas identidades trocadas.
Até aí a história demonstra apenas a bagunça da saúde pública em nossas paragens, mas esse fato é na verdade o absurdo menor; teoricamente poderia ter acontecido até mesmo num hospital sueco ou alemão, onde imagino que os padrões sejam mais rígidos e o atendimento mais cuidadoso.
Mas poderia acontecer...
O pior veio depois.
Uma das pacientes, Vilma Maria, morreu e a família de Maria Rita foi avisada e veio para o enterro.
Aí começa um absurdo surrealista. Ao chegar e ver o caixão com a defunta, a família de Maria Rita não a reconheceu.
Vilma é visivelmente mais escura que Maria Rita, mas as enfermeiras disseram que isso era consequência do derrame.
A família não se convencia, mas quando recebeu o atestado de óbito em nome de Maria Rita, os parentes chorando muito se conformaram, fizeram o velório e enterraram Vilma achando que estavam enterrando Maria Rita.
Maria Rita, que é visivelmente mais clara que Vilma, teve alta em 20 de março.
Quando a família chegou para levá-la para casa, a filha disse que deveria haver algum engano, já que aquela mulher não era a sua mãe.
Uma enfermeira alegou primeiro que ela mudara de aparência devido à doença (o mesmo derrame, segundo o Hospital, clareou uma e escureceu outra) e, mais uma vez, apelou para o argumento de autoridade, mostrando a ficha médica onde constava o nome de Vilma.
Mais uma vez a evidência cedeu ante o conformismo atávico e a família de Vilma levou Maria Rita para casa e tratou-a com todo o carinho e desvelo (único aspecto bom de nossa mansuetude).
Foram precisas três semanas para que o imbroglio começasse a ser desfeito.
Quando começou a recuperar a memória, Maria Rita estranhou o ambiente e acabou por revelar sua identidade dizendo que aquela não era a sua família.
Só aí os parentes de Maria Rita foram informados e constataram que ela estava viva e perceberam que haviam enterrado a pessoa errada.
Curioso é que os jornais que noticiaram o fato deram ênfase à troca e não à aceitação bovina dos argumentos de autoridade dos responsáveis pelo fato.
O absurdo chegou ao ponto da autoridade (a enfermeira) acusar a filha de Vilma de não reconhecer a própria mãe.
Em momento algum, nos dois casos, se cogitou, por um instante, que as famílias poderiam estar com a razão e o mais grave elas acabaram por dobrar-se à autoridade em algo que é no mínimo fundamental (a identidade da mãe), o que revela um conformismo e uma submissão além de qualquer esperança, associados a um autoritarismo sem possibilidade de contestação.
Com um povo assim, faz-se o que se quer.
Pobre Brasil!
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Crédito:Luiz Affonso
Autor:Fritz Utzeri
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