Rio de Janeiro, 11 de Maio de 2024

A cidade do Rio como estúdio

Atire a primeira pedra na cristaleira quem nunca desejou ter dentro dela um legítimo pratinho de porcelana do Pão de Açúcar. A fórmula que garante a foto em preto-e-branco impressa na louça é única no mundo e segredo absoluto. Talvez por isso o pratinho seja um dos souvenirs fotográficos da cidade que os cariocas consomem com cada vez mais orgulho. Gente como o arquiteto Miguel Guimarães, que acha seu mimo — em que aparece com a filha, Manoela, e a mulher, Patrícia — um luxo e o mantém em lugar de destaque na decoração do quarto. E revela sem pudor que possui uma série de fotos produzidas no Jardim Zoológico, onde a imagem da pimpolha se mistura com a dos animais.

É possível fazer um roteiro delicioso do Rio a partir dessas fotos para recordação. Há desde imagens instantâneas tiradas na Feira de São Cristóvão aos estúdios com fotos digitais montados na Babilônia Feira Hype e no parque Rio Water Planet, onde o freguês solta toda a criatividade sob a forma de perucas fosforescentes, figurinos exóticos, luvas de seda, chapéus de cowboy. E há as imagens clássicas, como as tiradas por Nikolaos Dimitriadis, o seu Niko, grego que adotou o Rio no fim dos anos 40 e desde então flagra turistas e nativos aos pés do Cristo Redentor. Assim como os outros fotógrafos deste roteiro de instantâneos do Rio, seu Niko aceitou ir para o outro lado das câmeras e emprestou seu próprio equipamento para ser flagrado como modelo pela primeira vez na vida.

Apaixonado pela cidade, ele e o colega Jaime Braga — que já subia o Morro do Corcovado com a câmera antes de a estátua do Cristo chegar lá, em 1931 — emocionam pelo amor com que vestem a camiseta com a inscrição “Fotógrafo” e pelas muitas histórias que têm para contar. E amolecem o coração até de quem está no Cristo a trabalho. Fica impossível resistir a uma foto.

— A melhor hora para ser fotografado é pela manh㠗 ensina seu Niko, que vende a foto simples e também em pratinhos plásticos ou em chaveiros. — Com sol, isso aqui é sempre fotogênico. Já ofereci uma sociedade a São Pedro, mas ele nunca me respondeu.

Os pratinhos do Cristo e do Zôo são de plástico e trazem a foto montada na moldura. De louça mesmo, só no Pão de Açúcar, onde a imagem em preto-e-branco é impressa direto na porcelana. Exclusividade mundial inventada nos anos 50 por um chinês que fez os primeiros pratinhos em Paquetá. Vendeu a fórmula para o Pão de Açúcar em 1976, quando voltou para Formosa, sem suspeitar que estava criando um dos símbolos da cidade.

Olha o passarinho

José Barroso como modelo do famoso pratinho do Pão de Açúcar. Ele é o responsável pelas fotos
Há mais de 20 anos trabalhando no Pão de Açúcar, José Barroso de Farias comanda uma equipe de 12 pessoas. Para trabalhar como fotógrafo na saída do bondinho, há dois requisitos básicos: ser preciso com a câmera e rápido na corrida, já que a promessa é entregar o prato pronto 20 minutos depois que a foto foi tirada. É necessário esperar os fregueses na saída do bondinho, clicá-los e correr para o laboratório montado ali mesmo, numa salinha ao lado do estande. O prato ganha uma camada de tinta branca para que se transforme numa superfície tão lisa e regular quanto a do papel fotográfico. Depois recebe a emulsão secreta e a impressão da foto, que vaza para as bordas. O acabamento é feito com gilete — a rapidez é tanta que parece exigir anos e anos de treino.
A corrida contra o tempo também já virou rotina para Selma dos Santos, que coordena a equipe de fotógrafos e laboratoristas do Canecão. O desafio é clicar toda a platéia e ter o resultado pronto na penúltima música, para que a venda possa ser feita antes do bis. Pioneira, ela começou clicando os fregueses em preto-e-branco, em 1977, e, dois anos depois, viu a cor revolucionar o mercado de imagens instantâneas.

— A mudança para a imagem colorida aconteceu num show de Roberto Carlos — lembra. — Como ainda estávamos nos adaptando, não terminamos a tempo. As pessoas esperaram as fotos até as seis da manhã e os outros lugares copiaram a novidade.

Selma chegou a servir de inspiração para Janete, personagem de Lucélia Santos na novela “Água viva”, de Gilberto Braga. Menina rebelde, Janete fotografava na noite. E a atriz recebeu aulas das meninas do Canecão para saber como se portar. Na vida real, o convívio das fotógrafas com os maiores artistas da MPB é intenso, mas um tanto frustrante. Selma já perdeu a conta dos shows que viu entrar em cartaz, mas não lembra de uma noite sequer que tenha conseguido tirar uma casquinha. Ouve tudo, mas não vê nada.

Os anos de prática fazem com que ela saiba de cor os shows que vendem mais fotos — Bethânia, Ney Matogrosso, Chico Buarque, Caetano, Djavan e Elymar Santos — e também o tipo de freguês que compra mais.

— Os casais acabam querendo levar uma recordação. A gente vive tão atarantada que às vezes nem reconhece os famosos que está registrando. Outro dia fotografei o Marcello Antony e a Monica Torres e só fui perceber quem eram quando a foto estava sendo revelada. Ficou tão bonita que eles acabaram levando — lembra ela, que também já clicou Romário, Adriane Galisteu, Claudia Raia e Edson Celulari.

Selma ilustra bem o que são esses fotógrafos em tempo real. A maioria aprendeu o ofício com muita prática e um pouco de intuição, sem nunca ter passado por um curso técnico que lhes ensinasse como escolher a melhor luz ou como encontrar o foco.

Sheila Lopes, que bate ponto na Feira de São Cristóvão todo fim de semana, compensa a deficiência de informação com um jogo de cintura invejável. Ex-menina de rua, Sheila se vestia como garoto para se defender de violência sexual na infância. Só ganhou um nome quando foi internada numa instituição para menores, mas não faz o menor drama de sua vida sofrida. Em São Cristóvão, no piscinão de Ramos ou no Baixo Gávea, ela se apresenta sempre fantasiada e prende uma perereca de plástico na calcinha. O recurso infalível na hora em que ela precisa dizer “Olha o passarinho!” é levantar a saia e revelar a perereca. Até Buster Keaton abandonaria o ar sisudo para soltar ao menos um sorrisinho.

— Nem lembro direito como cheguei à fotografia, sei que fui chegando — diverte-se ela. — Sempre trabalhei na rua, fazendo malabarismos e cantando para conseguir dinheiro. Também tiro da rua as roupas que visto, que são construídas com restos deixados no lixo. Quando os sapatos estão muito furados, encho os buracos de paetês e strass. Já vendi vários para dondocas por um bom dinheiro.

Na Babilônia Feira Hype, Emerson Alves também capricha na performance e chega a tirar 200 fotos por fim de semana. Com som ambiente e showzinho do fotógrafo antes de cada clique, o estúdio é uma mistura de sala de estar e pista de dança na feira do Jockey.

— Só fotografo depois que danço bastante e estimulo cada um a não ter limites para produzir a fantasia — diz ele, que importa de Chicago as perucas em cores ácidas e fosforescentes.

No Rio Water Planet, Sonia Bulhões e Elieser Souza inventam estúdios temáticos de acordo com a data. Já produziram um Papai Noel surfista, que era flagrado com bermuda e prancha de surf ao lado dos pimpolhos, e planejam angariar acessórios aquáticos — toda sorte de bóias e pés-de-pato, por exemplo — para as próximas férias. Por enquanto, as fotos são do mesmo estilo das da Babilônia. As famílias que se esbaldam na água adoram.

Já as famílias da Zona Norte cresceram tirando fotos com Bernardo Soares Lobo, de 75 anos, há 48 o lambe-lambe oficial do Jardim do Méier.

— Lambe-lambe é um termo que surgiu há muitos e muitos anos, quando uma reportagem de TV entrevistou o fotógrafo mais antigo do Passeio, um alemão que, cheio de sotaque, explicou que “era do tempo em que não se usava o cola, só o lambe-lambe para fixar as fotografias” — lembra ele. — O nome pegou, mas, no registro, nossa profissão é a de fotógrafo de jardim.

Português nascido em Braga, ele aprendeu os mistérios da fotografia na Ásia, entre 1949 e 1953, quando engrossou as fileiras do exército lusitano na luta por Macao contra a China. Alguém precisava registrar os acontecimentos no quartel e sobrou para seu Lobo. Hoje, ele suspira com saudade ao lembrar das 3x4 em preto-e-branco, mais bonitas e mais lucrativas que as coloridas instantâneas que foi obrigado a adotar, para se adaptar aos novos tempos. E ainda se surpreende quando entra em cartórios e repartições, onde vai prestar serviços, e acaba recebendo abraços emocionados de juízes e desembargadores. Todos ainda lembram do lambe-lambe que registrou sua infância.

— É por isso que, mesmo ganhando pouco, não consigo me aposentar — diz ele.

Crédito:Fatima Nazareth

Autor:Daniela Name

Fonte:O Globo